O setor elétrico brasileiro se caracteriza por ciclos de equilíbrio e desajustes. Há momentos em que as regras parecem funcionar com previsibilidade, seguidos por fases em que os instrumentos existentes já não dão conta de manter a ordem econômico-institucional e operacional do sistema.
Nessas horas, surgem as conhecidas tentativas de recomposição: soluções jurídicas, regulatórias ou legislativas que buscam, cada qual a seu modo, estancar as crises e restabelecer a normalidade.
Mas o que os últimos anos têm demonstrado é que, independentemente do caminho escolhido, o desfecho costuma ser o mesmo: a sociedade é quem paga a conta.
Seja como contribuinte, via recursos públicos, seja como consumidora, por meio das tarifas de energia, o ônus dos desequilíbrios do setor invariavelmente recai sobre o elo final da cadeia.
Agora, diante de novos passivos bilionários em debate, o setor começa a ensaiar mais uma resposta. E, com ela, surge a possibilidade de criação de uma nova “conta”, que já podemos chamar, ainda que informalmente, de Conta Curtailment — a mais recente candidata a perpetuar essa lógica de socialização dos prejuízos.
Antes, porém, de avançarmos para a problemática em si, vale resgatar alguns episódios recentes que ajudam a entender o que está, mais uma vez, em jogo.
A MP 579/12 e a renovação das concessões
O setor elétrico iniciou a década passada sob a promessa de redução estrutural das tarifas de energia. Em 2012, o governo editou a Medida Provisória nº 579/12, posteriormente convertida na Lei nº 12.783/13, que estabeleceu condições para a antecipação da renovação das concessões.
Para viabilizar tarifas mais baixas, propôs-se às geradoras a aceitação de uma remuneração limitada ao custo do serviço acrescido de O&M (Operação e Manutenção), além da adesão ao modelo de energia cotizada, vendida às distribuidoras a preços reduzidos.
Como incentivo de contrapartida, foi oferecida a prorrogação dos contratos de concessão. Entretanto, a motivação por trás dessa reestruturação ia além da engenharia setorial — tratava-se de um movimento enviesado política e eleitoralmente, voltado a conter os índices inflacionários às vésperas do pleito de 2014, evitando reajustes tarifários que pudessem pressionar a economia.
Os efeitos colaterais, no entanto, logo se impuseram. Com a perda de competitividade do mercado e a redução forçada de receitas das concessionárias, o caos se instaurou. Soma-se a isso a escassez hídrica, que exigiu a contratação emergencial de energia termelétrica a preços significativamente mais altos para garantir o abastecimento.
Sem recursos suficientes para cobrir seus próprios custos, as distribuidoras subcontratadas passaram a operar em déficit, abrindo caminho para uma crise de liquidez no setor.
Foi nesse cenário que surgiu a Conta-ACR, estruturada como um empréstimo setorial, com a participação de instituições financeiras e garantias da União, destinado a cobrir o rombo bilionário das empresas de distribuição.
O racional consistiu em evitar que a crise de caixa dessas empresas resultasse em um colapso do suprimento, diluindo o pagamento dessa dívida ao longo dos anos seguintes, com recomposição via tarifas.
A amortização da Conta-ACR foi realizada por meio de encargo tarifário inserido na CDE (Conta de Desenvolvimento Energético), justamente para diluir o impacto de forma menos perceptível ao consumidor — embora, na prática, isso tenha representado um aumento tarifário parcelado ao longo do tempo.
A MP 579, que pretendia reduzir as tarifas, acabou, paradoxalmente, gerando um dos maiores passivos do setor elétrico e estabelecendo um precedente claro: diante do desatino, cria-se uma conta, injeta-se recursos no sistema e repassa-se o custo final à sociedade.
GSF: quando as hidrelétricas foram obrigadas a parar (mas a conta chegou)
Na esteira dos impactos da MP 579, o setor elétrico enfrentou a crise do GSF (Generation Scaling Factor), um dos episódios mais emblemáticos de desequilíbrio do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE).
Com a escassez hídrica prolongada e a necessidade de garantir a confiabilidade do sistema, optou-se por priorizar o despacho de usinas termelétricas — mais caras, porém consideradas mais seguras sob a ótica operacional.
Nesse cenário, diversas hidrelétricas integrantes do MRE permaneceram fora do despacho, acumulando perdas significativas, ainda que tivessem, em teoria, capacidade de gerar, considerando os cálculos de suas garantias físicas.
A lógica que se colocou foi impositiva: assegurar o fornecimento contínuo de energia, mesmo ao custo de penalizar economicamente as hidrelétricas, cujos ativos ficaram subaproveitados enquanto o parque térmico operava em maior escala.
Para reequilibrar a situação, foi construída uma solução legislativa, formalizada na Lei nº 14.052/2020, que autorizou a repactuação do risco hidrológico. A proposta incluiu a criação de uma franquia de risco — um percentual mínimo de exposição assumida pelas próprias geradoras — e, como contrapartida, a prorrogação das concessões de geração.
Mais uma vez, houve troca: quem aceitasse absorver parte dos prejuízos garantia extensão contratual e previsibilidade futura, enquanto a parcela remanescente dos impactos econômicos acabou diluída nas tarifas e transferida, gradualmente, ao consumidor.
Conta-COVID: o modelo se repete
Poucos anos após a crise da MP 579, o setor elétrico voltou a recorrer a soluções conhecidas. Diante dos efeitos econômicos provocados pela pandemia de COVID-19 — com queda acentuada no consumo, aumento da inadimplência e risco de desequilíbrio financeiro das distribuidoras — criou-se a Conta-COVID, mais uma vez estruturada como um empréstimo setorial garantido pela União e com pagamento escalonado via tarifa.
Assim como ocorrera na Conta-ACR, os custos foram incorporados à CDE, que novamente serviu como canal aparentemente mais ameno para diluir, ao longo dos anos, o impacto nas faturas de energia.
E, assim, repetiu-se o roteiro: diante do desequilíbrio, organizou-se um financiamento coletivo, buscando manter a liquidez do setor e, inevitavelmente, redistribuindo o custo final entre os consumidores.
Aqui vale um adendo: por se tratar de uma crise sistêmica e extraordinária, houve quem defendesse que os recursos deveriam ter partido diretamente do Tesouro Nacional, com cobertura pelo Orçamento Geral da União, e não das faturas de energia.
“Conta Curtailment”
Se o padrão do setor elétrico brasileiro tem sido o de criar soluções tarifárias para cobrir os buracos deixados por sucessivas crises, a Conta Curtailment surge como mais uma candidata a seguir esse padrão.
O passivo em discussão, superior a R$ 1 bilhão, decorre de restrições operativas (e estruturais) que impediram o despacho pleno de usinas renováveis, especialmente eólicas e solares, em cenários de alto recurso energético, mas com limitações na capacidade de escoamento.
O problema, entretanto, não é simples. Há resistência dentro da própria ANEEL quanto à ideia de repassar esse custo às tarifas dos consumidores, especialmente via ESS (Encargos de Serviços do Sistema), mecanismo destinado a cobrir despesas ligadas à segurança operativa do sistema — e não a compensar agentes por limitações estruturais da transmissão ou alterações na ordem de mérito do despacho.
Afinal, quem seria razoável penalizar por restrições que as próprias geradoras não provocaram e sobre as quais não tinham qualquer capacidade de controle?
Diante da crescente pressão do setor sobre esse tema, o CMSE (Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico) realizou, em março de 2025, uma reunião extraordinária para tratar dos impactos do curtailment na geração renovável.
Como resultado, foi decidido criar um grupo de trabalho (GT) para analisar e propor medidas que mitiguem os cortes na geração de energia e reduzam os prejuízos financeiros dos geradores.
O grupo, coordenado pela Secretaria de Energia Elétrica do Ministério de Minas e Energia (MME), contará com a participação de representantes da ANEEL, EPE, ONS e CCEE. A pauta inclui o diagnóstico das causas do curtailment e a elaboração de propostas tanto regulatórias quanto estruturais para minimizar o problema.
Entre as possíveis soluções discutidas, destacam-se o reforço e ampliação da infraestrutura de transmissão, a antecipação de obras para escoamento da geração, o uso de compensadores síncronos no Nordeste e até a avaliação do armazenamento de energia como forma de flexibilizar o sistema.
Ou seja, mais uma vez, parecem surgir tentativas de encontrar soluções já conhecidas. Seria a CDE o caminho para acomodar mais esse ônus?
Aqui se impõe outra reflexão: a CDE, já sobrecarregada por uma multiplicidade de subsídios, compensações e políticas públicas setoriais, ainda comportaria mais esse peso?
Com tantas finalidades justapostas e custos crescentes, a CDE se tornou um mecanismo opaco e de difícil acompanhamento, transformando-se, aos poucos, numa espécie de “conta universal” para qualquer problema setorial.
E, assim, chegamos à provocação inevitável: se não será via ESS, se a CDE já dá sinais de esgotamento e se o Tesouro não se coloca como alternativa (na condição de política pública mitigadora), quem vai pagar a Conta Curtailment?
Talvez estejamos diante de um impasse novamente. Afinal, quando o caixa não fecha, o setor elétrico sabe exatamente a quem recorrer: o consumidor cativo da distribuidora. O tema merece atenção, pois o histórico do setor nos ensina lições que revisitamos aqui.
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