Atrasos de conexão na GD: soluções jurídicas e caminhos para reparação de danos

Este artigo traça diretrizes para a solução de controvérsias estruturais no mercado de energia
Atrasos de conexão na GD: soluções jurídicas e caminhos para reparação de danos
Foto: Liliane Caramel

A expansão da GD (geração distribuída) é um pilar da transição energética no Brasil. Empreendedores e investidores estão direcionando capital significativo para projetos de energia solar, apostando nos benefícios econômicos e ambientais.

No entanto, um obstáculo crítico surge com frequência, colocando em risco a viabilidade de projetos cuja lógica econômica depende de retorno rápido e previsibilidade regulatória: atrasos injustificados por parte das distribuidoras de energia para conectar novos empreendimentos à rede. Essa paralisia não apenas adia o retorno financeiro esperado, mas também pode criar uma cascata de problemas contratuais e operacionais.

Felizmente, existe um robusto arcabouço legal e regulatório para proteger os empreendedores. Ao compreenderem seus direitos e o uso estratégico de ferramentas jurídicas, é possível superar esses desafios, fazer cumprir os prazos e buscar reparação por perdas e danos.

Este artigo, baseado em casos práticos e argumentos jurídicos consolidados, delineia o caminho para a resolução dessas disputas críticas.

A base regulatória

Navegar em um conflito com uma distribuidora de energia começa com a compreensão da hierarquia das normas que regem essa relação. Longe de ser uma questão puramente técnica, a conexão de uma usina de GD é protegida por múltiplas camadas de proteção legal e regulatória.

Em primeiro lugar, a relação entre o empreendedor (o “consumidor-gerador”) e a distribuidora de energia é regida pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), conforme reconhecido por diversos tribunais, inclusive em casos de geração distribuída, onde o STJ já estendeu essa proteção ao consumidor em relações com concessionárias de serviço público (ex: REsp 1.634.851/RS).

Isso é expressamente reforçado pela Lei nº 14.300/2022, marco legal da micro e minigeração distribuída, que define o titular do projeto como um “consumidor-gerador”.

Este enquadramento é crucial, pois reconhece a vulnerabilidade técnica e informacional do empreendedor frente à distribuidora, que detém o monopólio do serviço e o acesso exclusivo a informações críticas da rede. Isso, muitas vezes, justifica a inversão do ônus da prova em uma disputa judicial, exigindo que a distribuidora prove que não falhou em seu serviço.

Sobre essa base, regulamentações específicas da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), em especial a REN 1.000/2021, estabelecem prazos claros e obrigatórios para cada etapa do processo de conexão. Prazos-chave frequentemente violados incluem:

  • Obras de Extensão de Rede: Violação dos prazos para concluir as obras de conexão, estabelecidos pela ANEEL no artigo 88 da REN 1.000/2021 (60, 120 ou 365 dias) e firmados contratualmente no CUSD ou Termo de Obras, sem que a distribuidora apresente qualquer justificativa plausível;
  • Fornecimento de Dados Técnicos: Prazo máximo de 30 dias para que a distribuidora forneça informações essenciais, como os dados de curto-circuito, necessários para que o empreendedor projete e construa sua própria infraestrutura;
  • Vistoria e Conexão: Após o empreendedor concluir suas obras e solicitar a finalização do processo, a distribuidora tem o prazo máximo de 10 dias úteis para realizar a vistoria em conexões de média tensão. Uma vez aprovada a vistoria, a conexão deve ocorrer de forma automática.

Cenários comuns de atraso na prática

As falhas das distribuidoras frequentemente seguem padrões previsíveis. A análise de casos reais revela táticas comuns usadas para justificar atrasos, que são frequentemente ilegítimas.

Um problema recorrente envolve a distribuidora que não cumpre seu próprio prazo para obras de rede, enquanto culpa o empreendedor por uma suposta pendência. É comum que a distribuidora suspenda indevidamente a obra, alegando que o empreendedor não finalizou sua parte, como a instalação do Ponto de Entrega (PDE).

No entanto, muitas vezes o empreendedor depende de dados técnicos que a própria distribuidora deveria fornecer (e frequentemente atrasa) para poder avançar com suas obrigações. Mesmo após a regularização por parte do cliente, a distribuidora permanece inerte, violando seus deveres contratuais e regulatórios.

Em outro cenário comum, o empreendedor cumpre todas as suas obrigações, conclui a construção da usina e passa com sucesso por todas as vistorias, apenas para ficar aguardando a conexão final.

Diante da ausência de pendências, a distribuidora se recusa a energizar a usina, oferecendo apenas desculpas vagas e genéricas como “a necessidade de uma aprovação interna do projeto”. Esse tipo de justificativa é inaceitável, pois processos administrativos internos não podem ser usados para justificar o descumprimento de prazos regulatórios.

Não menos comum, a distribuidora invoca “condições suspensivas” (licença ambiental, autorizações, providências para obtenção de servidões ou desapropriações, etc.) para justificar o atraso na conclusão das obras de sua responsabilidade.

Porém, pela REN 1.000/2021, essas condicionantes só suspendem o prazo se preencherem requisitos estritos e com prova robusta:

  • (i) tratar-se de licença/anuência/autorização estritamente necessária;
  • (ii) competir à distribuidora obtê-la (art. 87);
  • (iii) ter havido diligência célere e comprovada na obtenção (protocolos, exigências atendidas, ofícios) — requisito expresso no §1º do art. 89; e
  • (iv) comunicação prévia, por escrito, ao consumidor, com as justificativas e documentos comprobatórios (art. 89, §2º).

Nesses casos, os prazos de início/conclusão das obras ficam suspensos, e a contagem é retomada quando a pendência cessa — não há “acréscimo automático” ao CUSD: o tempo “congela” e depois continua.

Neste ponto, é instrutivo traçarmos um paralelo com o direito de suspensão concedido ao próprio consumidor. Assim como o inciso II do §4º do artigo 157 da REN 1.000/2021 limita a prorrogação do prazo para o consumidor à comprovação de que o motivo da solicitação persiste (como a evolução do licenciamento de sua usina), um princípio análogo de causalidade e temporalidade rege a suspensão de prazo pela distribuidora.

A permissão para que a concessionária “congele” o cronograma, conforme o artigo 89, não é um direito absoluto ou por tempo indeterminado. A suspensão está estritamente vinculada à existência da condição que a motivou.

Dessa forma, a distribuidora deve não apenas provar a existência do impedimento (como uma pendência de licença), mas também demonstrar sua diligência contínua para resolvê-lo. Uma vez que o obstáculo cessa, o prazo deve ser retomado imediatamente.

Portanto, a lógica da regulação é simétrica: nenhuma das partes pode se beneficiar de uma suspensão indefinida. O direito de paralisar o cronograma dura apenas enquanto a causa subjacente, devidamente comprovada, existir, garantindo um equilíbrio de responsabilidades e evitando que a suspensão seja utilizada como subterfúgio para justificar a ineficiência ou a falta de planejamento.

Se a suspensão for indevida (p.ex., falta de prova de diligência), todo o período suspenso passa a contar como atraso para fins de compensação do art. 440 (art. 89, §3º) ou mesmo para a quantificação de lucros cessantes no período.

Essa previsibilidade é um princípio que rege todo o processo desde sua origem. A regulação determina que o Orçamento de Conexão já deve prever de forma clara a relação das obras, os custos, o cronograma e as situações que podem, excepcionalmente, suspender os prazos.

Uma vez que o empreendedor aceita este orçamento e o formaliza através da assinatura do Contrato de Uso do Sistema de Distribuição (CUSD), o acordo se consolida. Decisões da ANEEL são enfáticas ao classificar este compromisso como um “ato jurídico perfeito”, protegido pelo §5º do artigo 83 da REN nº 1.000/2021, que estabelece que o orçamento aprovado somente pode ser alterado mediante acordo entre as partes.

Portanto, todo o planejamento, incluindo a obtenção de licenças e servidões, deve estar contido nesta pactuação inicial, blindando o empreendedor contra alterações unilaterais e surpresas que comprometam a viabilidade do projeto.

A insuficiência da via administrativa: a compensação do Art. 440 da REN 1000

A ANEEL prevê uma via de reparação administrativa para o descumprimento de prazos por parte das distribuidoras. O Art. 440 da REN 1.000/2021 estabelece que a distribuidora deve efetuar uma compensação financeira ao consumidor, creditada diretamente na fatura de energia, caso viole os prazos comerciais e de serviços definidos na norma.

Embora seja um mecanismo automático e de baixa complexidade, essa compensação tem valor simbólico e caráter meramente sancionador, assim como raramente reflete a real dimensão do prejuízo sofrido pelo empreendedor.

Os valores são, em geral, irrisórios quando comparados à receita perdida com a usina paralisada. O ponto mais importante, no entanto, é que o recebimento desta compensação administrativa não impede que o consumidor busque a reparação integral de seus danos na via judicial, o que inclui os lucros cessantes e danos emergentes.

O mecanismo do Art. 440 funciona como uma sanção regulatória mínima, mas não como uma solução definitiva ou uma limitação ao princípio da reparação civil plena (restitutio in integrum).

Em decisões administrativas, a ANEEL tem limitado essa compensação ao escopo regulatório, deixando fora pleitos típicos de dano civil — o que, por consequência, preserva a via judicial.

O caminho para a resolução: a tutela judicial

Diante da ineficácia das vias administrativas e da magnitude dos prejuízos, a ação judicial torna-se o caminho mais efetivo. A jurisprudência dos tribunais tem se consolidado a favor dos empreendedores, reconhecendo as falhas das distribuidoras e garantindo a reparação dos danos.

1. Ordem judicial urgente para conexão (Tutela de Urgência)

Para evitar que o prejuízo se prolongue durante todo o trâmite do processo, é possível solicitar uma liminar (tutela de urgência) para compelir a distribuidora a agir imediatamente. Os tribunais têm concedido essas ordens para determinar a conclusão de obras e a conexão de usinas, especialmente quando o descumprimento dos prazos é evidente e injustificado.

2. Indenização por perdas e danos

A recuperação dos prejuízos acumulados pelo consumidor decorrentes do atraso de conexão do seu sistema de geração de energia dá-se, em uma ação judicial, através de um pedido de indenização.

A jurisprudência brasileira é pacífica ao reconhecer que a demora injustificada na conexão caracteriza falha na prestação do serviço, gerando o dever de indenizar. A responsabilidade da distribuidora é objetiva, ou seja, independe da comprovação de culpa.

A indenização abrange principalmente os lucros cessantes, que correspondem ao que o consumidor “o que razoavelmente deixou de lucrar”. Nos casos de atraso, isso se traduz no valor da energia que a usina deixou de gerar e compensar durante todo o período da mora da distribuidora.

Para comprovar esses valores, é essencial apresentar um laudo técnico com estimativa de geração mensal e projeção de receita, utilizando ferramentas reconhecidas como o PVSyst, além de estimativas de tarifas aplicáveis ao período.

Os tribunais têm aceitado que o valor final dos lucros cessantes seja apurado em fase de liquidação de sentença, garantindo que todo o período de atraso seja compensado – muito embora seja sempre recomendado indicar com o pedido indenizatório uma estimativa concreta de prejuízos acumulados.

Além da receita perdida (lucros cessantes), a reparação integral dos prejuízos abrange os danos emergentes, que são os custos diretos e efetivos que o empreendedor foi forçado a arcar por conta exclusiva do atraso da distribuidora. A base legal para essa cobrança está no Código Civil, que prevê a reparação pelo que a parte “efetivamente perdeu” (art. 402 e 403 do Código Civil).

Na prática, esses custos podem incluir uma série de despesas diretas, tais como: de GD incluem:

  • (i) custos com armazenamento e seguro de equipamentos, como módulos e inversores, que permanecem parados;
  • (ii) despesas de mobilização, desmobilização e permanência prolongada de equipes de construção no local;
  • (iii) aluguel de equipamentos ou geradores provisórios para suprir necessidades energéticas durante o atraso;
  • (iv) pagamento de multas ou custos de reequilíbrio em contratos com terceiros (EPC, O&M, locação de terrenos);
  • (v) encargos financeiros adicionais, como juros e IOF, sobre financiamentos que não puderam ser amortizados com a receita do projeto;
  • (vi) custos para revalidar laudos, licenças e ARTs que expiraram devido à demora na conexão.

Para que esses valores sejam ressarcidos, é fundamental que cada despesa seja rigorosamente documentada (por meio de notas fiscais, contratos e relatórios de custos) e que se comprove o nexo de causalidade direto entre o custo incorrido e a mora da distribuidora.

Conclusão

Embora os atrasos de conexão de projetos de GD representem um desafio severo, os empreendedores não estão impotentes. O arcabouço jurídico, do Código de Defesa do Consumidor às regulamentações específicas da ANEEL, oferece uma base sólida para a defesa de seus direitos.

Ao documentar meticulosamente as falhas da distribuidora, gerenciar proativamente suas próprias obrigações e adotar uma estratégia jurídica bem fundamentada, é possível romper o impasse.

A busca da tutela judicial, amparada por uma jurisprudência cada vez mais favorável, tem se mostrado uma ferramenta poderosa não apenas para forçar a tão esperada conexão, mas também para garantir a reparação integral dos danos econômicos sofridos durante o período de inatividade forçada.

As opiniões e informações expressas são de exclusiva responsabilidade do autor e não obrigatoriamente representam a posição oficial do Canal Solar.

Foto de Lucas Ferrari
Lucas Ferrari
Advogado, diretor Jurídico e sócio da Noale Energia. Sócio fundador do escritório Ferrari Boschin Advogados. Graduado em Direito pela UFRGS (2005). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa (2015) e possui LL.M. em Direito da Energia e Negócios do Setor Elétrico pelo CEDIN (2023). Especialista em propriedade intelectual, direito digital e regulação do setor elétrico, atua há mais de 15 anos em contencioso estratégico e consultoria para projetos de geração distribuída, autoprodução e mercado livre de energia.

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