Formigas versus tamanduá: o setor elétrico preso ao passado

Até quando suportaremos as travas do atraso?
Formigas versus tamanduá: o setor elétrico preso ao passado
Foto: Gerada por IA

Tudo não teremos. Mas muito já poderíamos ter, não fosse a miopia política que insiste em tratar o setor elétrico como se ainda estivéssemos nos anos 70. Subsídios, tão demonizados no discurso fácil, tiveram papel estratégico.

O Proinfa ajudou a diversificar a matriz; o Proálcool ergueu uma das indústrias de etanol mais robustas do mundo. A geração distribuída também teve seu momento de incentivo — e esse ciclo já virou a página: hoje o pequeno consumidor paga pelo uso da rede, o benefício foi graduado e “taxado” ao longo da transição regulatória e o pequeno já contribui com a parte que lhe cabe.

O problema não está nos incentivos em si, mas nas travas estruturais que estrangulam a economia e impedem o setor de avançar: consumo que cresce devagar, custo de capital sufocante e, acima de tudo, um modelo centralizado e ultrapassado de planejamento que não conversa com a transição energética.

Aqui está o ponto central:

  • Quem é o grande? São os grandes grupos do velho setor elétrico, donos de ativos concentrados, influência econômica e política, e benefícios diretos que seguem vigentes.
  • Quem é o pequeno? É o consumidor comum, o comércio de bairro, a agricultura familiar, as pequenas instaladoras — gente que adotou a energia solar no telhado como única alternativa para reduzir a conta de luz e que já paga o custo da rede.

Enquanto o pequeno cumpre novas regras e paga sua parte, os privilégios dos grandes permanecem. São subsídios e vantagens diretas que poucos estão dispostos a abrir mão.

No jogo da narrativa, esses mesmos grupos tentam convencer que o encarecimento da luz vem do telhado do consumidor — e que o pequeno é o vilão. Para isso, investem em campanhas publicitárias de tom simplista, algumas reunidas sob o rótulo de “Movimento Energia Justa”.

Mas basta visitar os sites e ver quem compõe esse movimento para perceber: são, em grande parte, os mesmos atores favorecidos pelo velho modelo, que raramente estiveram na linha de frente quando o assunto era reduzir de fato a conta de luz do pequeno.

E o pequeno fez o que lhe restou: gerou energia onde dá — no telhado de casa, do comércio, da escola, do sítio. Modernizou-se, com tecnologia limpa e acessível. E, quando as “formiguinhas” começaram a dar certo, vieram as investidas do “tamanduá” — lento, mas com garras afiadas pelo poder econômico e regulatório.

A disputa parece desigual: um tamanduá de um lado, milhões de formigas do outro. Só que essas formigas estão espalhadas por mais de 5 mil municípios e, quando se organizam, sufocam as narinas e desgastam as unhas de um tamanduá mimado por velhos privilégios.

Também é importante entender o que está mudando. O setor elétrico do “ontem” era centralizado: poucos grandes geradores, linhas longas de transmissão e consumidores passivos, que apenas pagavam a conta.

O setor do “hoje” já pede descentralização: muitos pequenos produtores, redes inteligentes, armazenamento de energia, sistemas híbridos, mobilidade elétrica e usinas virtuais (VPPs) que integram tudo isso e equilibram a rede em tempo real. Nesse novo desenho, o consumidor deixa de ser espectador e vira protagonista — gera, armazena, gerencia e participa.

Essa mudança não é apenas tecnológica ou de mercado; ela tem fundamento constitucional. O artigo 170 da Constituição Federal, em sua redação atualizada pela Emenda Constitucional nº 42/2003, estabelece a defesa do meio ambiente como princípio da ordem econômica, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços.

Ou seja, há base jurídica clara para que atividades de menor impacto, como a energia solar e outras renováveis, recebam tratamento compatível com sua relevância ambiental e social.

Dá para conviver? Dá, e deve. Grandes usinas continuarão estratégicas. Pequenos geradores são a ponte entre inovação e alívio imediato na conta. O que não dá é empurrar novas cobranças para as costas do pequeno só para manter de pé os subsídios diretos que sustentam privilégios de velhos oligopólios.

Tampouco dá para aceitar campanhas que se travestem de “defesa do consumidor” enquanto apontam a geração solar distribuída como culpada de todos os problemas de um setor que carrega décadas de atraso e falta de planejamento. Num cenário onde somente a energia solar nos telhados tem sido o único alento concreto para milhões.

Em um mercado que cresce, há espaço para todos: o jogo é limpo e cada agente ocupa sua fatia. Quando o bolo não cresce, vira “rouba-monte” — uma disputa predatória pelo que sobra. É nessa estagnação que velhos privilégios se defendem com unhas e dentes, enquanto o pequeno segue pagando uma das contas de luz mais pesadas do planeta.

O Brasil tem uma matriz majoritariamente renovável e capacidade tecnológica para liderar a nova fase. Não precisamos importar soluções: precisamos de planejamento, regras claras, transparência e igualdade de condições.

Sim, a convivência é possível — desde que não se castigue o pequeno e não se alimente a ilusão de que ele é o culpado do que o velho modelo deixou de fazer.

A provocação é direta: até quando manteremos um setor elétrico amarrado ao passado, avesso à inovação e refratário à participação ativa da sociedade? Até quando aceitaremos improvisos no lugar de planejamento de longo prazo?

O Brasil já mostrou que sabe ousar — basta lembrar o Proálcool e o Proinfa. Está na hora de ousar de novo: com um jogo transparente e moderno, sem privilégios ocultos e com respeito ao consumidor que decidiu participar da solução. Porque, convenhamos, boa sorte já não basta.

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