Microrredes de energia elétrica

As possibilidades de uso das microrredes são quase infinitas e dão ao consumidor a liberdade de usar a energia como e quando quiser
Microrredes de energia elétrica
Foto: Freepik

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O assunto das microrredes de energia vem ganhando atenção ao mesmo tempo em que o uso da energia solar fotovoltaica está se expandindo pelo mundo. Junto com a energia solar e as microrredes, outro tema que está ganhando muita força é o dos sistemas de armazenamento. Essas três coisas estão intimamente ligadas e criam possibilidades de fornecimento e uso da energia elétrica que antes nem eram imagináveis.

No mundo todo, assim como no Brasil, vem crescendo o uso de sistemas distribuídos de geração de energia elétrica. Nosso país entrou nesta onda em 2012 com a publicação da resolução No. 482 da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), que deu aos consumidores a opção de produzir sua própria energia. A geração distribuída de energia elétrica já não era uma novidade nesta época, mas ela ainda não era acessível à grande massa de consumidores alimentados em baixa tensão.

A resolução abriu um caminho, com pouca complexidade burocrática, para a conexão de geradores distribuídos às redes de baixa tensão e criou o sistema de compensação de créditos, que é necessário para dar viabilidade aos geradores distribuídos quando não existe simultaneidade entre geração e consumo.

Na modalidade de geração distribuída a fonte mais predominante é a solar fotovoltaica, por suas características de fácil e rápida instalação e ocupação de áreas ociosas, principalmente em telhados. Depois de ganhar a liberdade para produzir sua própria energia com sistemas de geração distribuída, o consumidor passou a se perguntar: se eu posso produzir toda a energia que consumo, por que preciso ainda da rede elétrica?

Ou então: será que posso usar o sistema fotovoltaico para aumentar a segurança da minha instalação contra falhas da rede? Ou ainda: será que posso agregar baterias ao meu sistema fotovoltaico e armazenar energia durante o dia para usar no horário de ponta, quando a energia da rede é mais cara?

Essas e muitas outras perguntas podem ser respondidas com uma palavra: microrredes. As possibilidades de uso das microrredes são quase infinitas e podem dar ao consumidor a liberdade de usar a energia como e quando ele quiser, inclusive dando adeus à rede elétrica pública. As microrredes podem ser também uma boa resposta para problemas políticos, quando interesses escusos ou “forças do mal” opõem-se à inserção massiva de geradores distribuídos solares e de outras fontes renováveis na matriz energética do país.

Em um mundo ideal, onde todos cooperam para o bem, os geradores distribuídos seriam vistos como uma força somada ao sistema elétrico tradicional, economizando água nos reservatórios, diminuindo perdas no sistema de transmissão e tornando mais verde e mais barata a energia para a população como um todo.

No entanto, existem oposições a esse modelo distribuído que podem, num futuro qualquer, tornar inviável a operação de sistemas fotovoltaicos conectados à rede. Embora atualmente seja economicamente viável e tecnicamente mais simples operar geradores solares conectados à rede, já existe tecnologia disponível para a operação de forma isolada se chegarmos ao ponto de isso ser necessário.

Ou podemos começar com algo mais simples, se as “forças do mal” assim nos obrigarem, sem a necessidade de operar totalmente off-grid: nos conectamos à rede, mas nada injetamos nela (é o que chamamos de operação  zero grid export ou simplesmente zero grid).

Apenas usamos energia da rede quando necessário e anulamos qualquer justificativa técnica ou política contra os geradores distribuídos. Isso é perfeitamente possível com recursos de limitação controlada de geração e armazenamento que podem ser incorporados às microrredes quando operam conectadas à rede tradicional.

O dicionário Oxford define precisamente o significado da palavra microrrede, englobando todas as possibilidades mencionadas nos parágrafos anteriores (em tradução livre do inglês): “uma pequena rede de eletricidade com fornecimento local de energia que é geralmente ligada ao sistema elétrico nacional, mas é capaz de funcionar de forma independente”.

O US Department of Energy diz que “uma microrrede é uma rede local de energia com capacidade de controle, o que significa que ela pode se desconectar da rede elétrica tradicional e operar de forma autônoma”.

O Berkeley Lab define microrrede como “um grupo de cargas e fontes de energia distribuídas e interconectadas, com uma fronteira elétrica bem definida, que atua como uma entidade única e controlável com respeito à rede pública. Uma microrrede pode se conectar e desconectar da rede pública para possibilitar a operação conectada ou ilhada”.

Todas as definições de microrredes, incluindo essas e outras que não mencionamos, convergem para as seguintes características ou funções que podemos obter com as microrredes:

  • Resiliência ou backup: a microrrede torna mais seguro o fornecimento de energia elétrica dos consumidores situados do seu domínio, podendo suprir totalmente a demanda energética em caso de indisponibilidade da rede pública, seja por períodos curtos ou prolongados;
  • Independência energética: a microrrede permite o abastecimento local de energia, reduzindo custos para os consumidores ou tornando-os energeticamente independentes;
  • Eficiência e economia: a microrrede permite o uso eficiente e inteligente da energia, proporcionando economia aos consumidores;
  • Atendimento de picos: a microrrede permite atender picos de consumo locais sem sobrecarregar a rede elétrica pública;
  • Integração de fontes: a microrrede permite a integração, para abastecimento local, de diferentes fontes de energia: geradores a diesel, turbinas a gás, sistemas fotovoltaicos, pequenos geradores hidráulicos e turbinas eólicas, por exemplo;
  • Descentralização energética: a microrrede descentraliza a geração e o uso da energia elétrica, ampliando e potencializando o escopo da geração distribuída, permitindo levar mais energia a locais com redes fracas e pulverizar investimentos na infraestrutura elétrica, gerando empregos locais;
  • Autonomia: a microrrede pode prover fornecimento elétrico estável e com qualidade para comunidades remotas, bases militares, pequenas cidades ou qualquer tipo de consumidor ou grupo de consumidores que não pode ser conectado ao sistema elétrico nacional.

A lista dos benefícios das microrredes não se restringe aos itens mencionados acima e pode ser maior. Em resumo, as microrredes, como o próprio nome já sugere, destinam-se a grupos pequenos e delimitados de consumidores ou cargas como um campus universitário, um hospital, um data center, uma comunidade, um complexo comercial, um condomínio ou qualquer agrupamento de consumidores que se diferencie do restante do sistema elétrico nacional pelo seu tamanho diminuto, podendo ser alimentado de forma conectada à rede ou isolada, combinando geradores de uma ou mais fontes e contando geralmente (mas não necessariamente) com o suporte de sistemas de baterias.

Há duas características importantes das quais devemos nos lembrar quando tentamos definir o que é (ou o que não é) uma microrrede:

  • A microrrede tem uma fronteira bem definida. Todos os consumidores inseridos na microrrede conectam-se à rede pública por meio de um único ponto de conexão;
  • Existe a possibilidade de funcionamento ilhado ou autônomo, com fontes próprias de energia.

De forma geral, a principal missão das microrredes é descentralizar o fornecimento e a gestão da energia elétrica, com os objetivos de melhorar o abastecimento ou conferir autonomia energética a consumidores já conectados a um sistema elétrico, atender consumidores isolados ou melhorar a eficiência e permitir o uso inteligente da energia de forma localizada.

Microrredes fornecem energia de forma eficiente e confiável para consumidores restritos à sua área de domínio e têm um ponto de conexão bem definido com o sistema elétrico nacional, podendo operar de forma isolada ou conectada
Microrredes fornecem energia de forma eficiente e confiável para consumidores restritos à sua área de domínio e têm um ponto de conexão bem definido com o sistema elétrico nacional, podendo operar de forma isolada ou conectada

A descentralização e a diversificação das fontes de energia, que são as características mais marcantes das microrredes, só foram permitidas com os avanços do campo da eletrônica de potência, uma ramificação da engenharia elétrica que se ocupa do desenvolvimento de conversores eletrônicos, como inversores e outros tipos de equipamentos, que permitem fazer coisas mágicas como a conversão e a integração da energia elétrica de diferentes fontes, a conversão de corrente contínua para alternada (ou vice-versa), a regulação do fluxo de potência em qualquer ponto de uma instalação, o fornecimento de energia reativa sem o uso de capacitores ou a conexão de bancos de baterias ao sistema elétrico.

Algumas possibilidades oferecidas pela eletrônica de potência e incorporadas ao universo das microrredes esbarram em questões legais, indicando que a evolução da tecnologia é mais rápida do que a evolução das leis, das regulações e das normas técnicas – sem contar os lobbies que podem se formar para barrar ou frear o avanço de determinadas tecnologias.

Por exemplo, um recurso incrível das microrredes que ainda carece de regulação no Brasil é a possibilidade de conectar sistemas de armazenamento para fazer troca de energia com a rede elétrica, permitindo que o consumidor armazene energia da própria rede em determinados intervalos de tempo para usá-la em outros horários. É uma possibilidade totalmente alinhada com a missão das microrredes: permitir a gestão e proporcionar o uso eficiente da energia elétrica de forma localizada.

Outra possibilidade, que mencionamos no início deste texto, seria a alimentação descentralizada de um pequeno grupo de consumidores, que pode optar por operar de forma totalmente isolada ou alternar entre os modos off-grid e on-grid conforme a necessidade.

No caso anterior, mesmo que a microrrede opere de forma ilhada, não tendo contato com a rede elétrica pública, isso envolve uma mudança de legislação para permitir ao dono ou ao gestor da microrrede o direito de comercializar energia, distribuindo-a para os consumidores internos. Se a microrrede operar alternadamente nos modos on e off-grid, haverá a necessidade de definir regras para os processos de desconexão e reconexão.

Esses problemas regulatórios e legais afetam não somente o Brasil, mas várias partes do mundo em que as microrredes são estudadas e já começam a ser utilizadas.

Ainda temos desafios a serem vencidos, principalmente regulatórios, para a disseminação do uso de microrredes, que apenas somam benefícios aos consumidores e ao sistema elétrico nacional como um todo. Mas a boa notícia é que as barreiras tecnológicas para a descentralização da geração e do uso da energia elétrica já não são um problema.

Microrredes fazem parte e são um item indispensável da transformação energética por que o mundo passa hoje, na qual observamos a inserção acelerada de fontes renováveis, a descentralização da geração de eletricidade e a adoção da eletromobilidade, que vai exigir reforços nas redes elétricas que talvez não sejam possíveis sem as microrredes.

Referências

  • Microrredes elétricas: uma proposta de implementação no Brasil, M. M. H Bellido, 2018
  • O futuro das microrredes, Associação Brasileira de Microrredes, 2021
  • A literature review of Microgrids: A functional layer based classification, F. Martínez, A. Miralles, M. Rivier, Renewable and Sustainable Energy Reviews, 2016
  • Microgrids: A Review of Status, Technologies, Software Tools, and Issues in Indian Power Market, IETE Technical Review, S. Sharma, Y. Sood, 2020
  • How microgrids work, US Department of Energy, 2014
  • Microgrids – What Are They and How Do They Work?, N-Sci Technologies, 2019
Foto de Marcelo Villalva
Marcelo Villalva
Especialista em sistemas fotovoltaicos. Docente e pesquisador da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) da UNICAMP. Coordenador do LESF - Laboratório de Energia e Sistemas Fotovoltaicos da UNICAMP. Autor do livro "Energia Solar Fotovoltaica - Conceitos e Aplicações".

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