Vamos falar de segurança e qualidade. Duas coisas que andam sempre juntas e são importantes quando falamos do DPS (Dispositivos de Proteção contra Surtos), o airbag das instalações fotovoltaicas.
Imagine a seguinte cena: você vai a uma loja de automóveis e o vendedor oferece duas opções do mesmo veículo com diferentes acessórios de segurança.
A opção 1 vem equipada com um airbag de marca conhecida e com certificado internacional de conformidade. A opção 2 tem um airbag genérico, ligeiramente mais barato e sem qualquer certificado.
O vendedor argumenta que raramente o airbag vai ser usado, então você pode levar tranquilo. Você fica satisfeito com a recomendação e sai da loja contente com o automóvel da opção 2, com a certeza de ter feito um bom negócio.
A cena narrada acima parece impossível, mas acontece todos os dias no mercado de energia solar fotovoltaica: o vendedor empurra para o consumidor uma string box que possui um dispositivo protetor de surto que além de inócuo pode ser perigoso.
O DPS pode ser considerado o airbag dos sistemas fotovoltaicos por duas razões. Em primeiro lugar, trata-se de um item de segurança. Ele é o dispositivo que aguenta o tranco e protege os equipamentos quando uma descarga atmosférica ocorre perto da instalação.
Em segundo lugar, é um item que não pode ser testado. Você não pode disparar o airbag para saber se ele funciona. Se você tiver um airbag no seu carro, é bom que ele seja o melhor airbag do mercado. A mesma coisa podemos dizer do DPS que equipa as string boxes (caixas de strings) dos sistemas fotovoltaicos.
O que tem dentro da string box? Basicamente é uma caixa ou um quadro elétrico onde são feitas as conexões dos strings fotovoltaicos, ou seja, dos circuitos de corrente contínua.
Uma string box básica possui no mínimo uma chave seccionadora e um DPS. Se a string box for preparada para receber três ou mais strings, serão necessários também os fusíveis para a proteção dos módulos fotovoltaicos contra corrente reversa.
Por que o mercado está inundado de string boxes montadas com componentes genéricos?
Muitos fornecedores de kits fotovoltaicos fornecem módulos e inversores de boa qualidade mas escorregam quando se trata da string box, cujo custo corresponde a uma minúscula fração do valor total do sistema.
Se olharmos dentro da string box vamos perceber que o DPS corresponde a uma pequena parte do custo dessa caixa. Moral da história: o custo do DPS é praticamente desprezível em um sistema fotovoltaico e a economia não se justifica.
O DPS visto por dentro
O DPS é um dispositivo relativamente simples. Todos os DPS do mercado são (quase) iguais, exceto por pequenos detalhes que fazem toda a diferença. O dispositivo basicamente é uma caixa plástica que contém um varistor ou em alguns casos um centelhador. O mais empregado nos sistemas fotovoltaicos possui apenas o varistor.
A função do varistor é desviar a corrente elétrica e absorver a energia dos surtos de tensão, protegendo assim os equipamentos que estão ligados à instalação elétrica. Surtos de tensão são causados normalmente por descargas atmosféricas, um fenômeno que frequentemente ocasiona a queima de aparelhos eletroeletrônicos desprotegidos.
Diferenciando os protetores de surto do mercado
Muito do que se pode dizer sobre protetores de surto de uma marca ou de outra, sem a devida orientação normativa e sem comprovação laboratorial, pode beirar o simples “achismo”.
Segundo informações que colhi com o colega Sérgio Santos, engenheiro eletricista da Lambda Consultoria, as normas de instalação que envolvem os DPS são a ABNT NBR 5410:2008, Instalações elétricas de baixa tensão e a ABNT NBR 5419:2015, Proteção contra descargas atmosféricas.
Já a norma do produto DPS é a ABNT NBR IEC 61643-1:2007 Dispositivos de proteção contra surtos em baixa tensão Parte 1: Dispositivos de proteção conectados a sistemas de distribuição de energia de baixa tensão – Requisitos de desempenho e métodos de ensaio. No Brasil só temos a primeira parte desta norma, mas existem várias outras partes na norma IEC correspondente.
Ele ainda acrescentou que Os DPS não são produtos de certificação compulsória pelo INMETRO (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia), como os disjuntores, por exemplo.
Por isso, se lê em vários DPS fabricados no Brasil ‘atende a norma ABNT NBR IEC 61643-1:2007’, ‘conforme a norma ABNT NBR IEC 61643-1:2007’. Mas o fabricante que certificou seu produto deveria escrever ‘certificado conforme a norma ABNT NBR IEC 61643-1:2007’ e apresentar o certificado correspondente.
Em resumo, de acordo com o exposto acima, existe uma norma IEC internacional que é parcialmente adotada no Brasil, mas a certificação não é compulsória. Então, o que observamos é a entrada no mercado brasileiro de produtos sem qualquer critério. O fabricante pode simplesmente declarar que atende as normas ou pode não declarar nada.
É importante o consumidor solicitar o certificado de conformidade internacional dos produtos, já que não temos no Brasil um programa de certificação compulsória para esses dispositivos. Os bons fabricantes, que nada têm a temer, certamente vão se voluntariar no fornecimento dessa documentação.
Abaixo vemos um exemplo de certificado de conformidade de um DPS para aplicações fotovoltaicas, emitido por laboratório internacional acreditado.
Dispositivo de extinção de arco e proteção conta incêndio
Um aspecto importante dos dispositivos de proteção de surto disponíveis no mercado é sua capacidade de extinguir o arco elétrico e evitar incêndios.
Dispositivos que não têm essa característica, em princípio, exigiriam o uso de fusíveis externos, o que torna as instalações mais complexas. Não havendo esses fusíveis é recomendável (se não mandatório) o uso de algum dispositivo interno.
Esse problema da extinção de arco e da possibilidade de incêndio está relacionado com o final da vida útil do dispositivo. O varistor interno do DPS tem uma vida útil limitada e pode ser usado por um número limitado de vezes.
Após várias atuações absorvendo surtos elétricos o varistor começa a ter sua impedância diminuída, originando uma fuga de corrente pelo dispositivo.
Essa fuga de corrente em algum momento vai atingir um nível crítico e poderá provocar curto-circuito e derreter o DPS, como ocorre com certa frequência nas instalações.
Ao ser derretido o DPS poderá originar um arco elétrico, criando um princípio de incêndio. Essa situação deve ser evitada nas instalações fotovoltaicas.
Para evitar os problemas mencionados acima a corrente de fuga pelo varistor deve ser interrompida de alguma forma. Ou seja, o varistor deve ser eliminado do circuito até que possa ser substituído por um novo.
O sistema de remoção do varistor encontrado em praticamente todos os protetores de surto do mercado consiste em um contato metálico associado a uma mola. A circulação da corrente de fuga derrete um ponto de solda e permite que o contato se abra como uma chave. O sistema é muito engenhoso, mas há aqui alguns perigos.
O método de rompimento por derretimento não é muito previsível e depende da qualidade da solda. Os dispositivos DPS que tive a oportunidade de abrir parecem ser feitos à mão – têm um aspecto de montagem caseira e inspiram pouca confiança.
Tudo bem, você pode dizer “É só uma opinião sua”. Verdade, é só uma opinião minha, pois eu não realizei testes com esses dispositivos. E nem é minha função realizar. Para isso, existem as normas técnicas e os laboratórios acreditados de certificação.
Depois da minha opinião no parágrafo anterior, vamos analisar um fato (que não é uma opinião, mas um fato verdadeiro): a abertura do contato mostrado na figura pode não ser rápida o suficiente para evitar um incêndio.
A abertura do contato, conforme vemos na Figura 4A, vai provocar um arco elétrico pela natureza do circuito. Estamos falando de um sistema fotovoltaico em corrente contínua, com tensões tipicamente entre 500V e 1500V. Temos aqui o cenário perfeito para um incêndio e quase sempre isso vai acontecer, cedo ou tarde.
Ninguém compra um DPS pensando no dia em que ele vai parar de funcionar, assim como ninguém compra um automóvel pensando em usar o airbag. Mas há que se considerar: quando você precisar do DPS, é bom que ele funcione.
E é bom também que ele não coloque sua vida ou seu patrimônio em risco. Ainda não conheço relatos de pessoas que morreram por causa de um DPS de má qualidade, mas existem aos montes sobre sistemas incendiados, com grandes prejuízos para seus proprietários.
A figura abaixo mostra um DPS da marca “D”, de qualidade superior.
NOTA: Não vou mencionar nomes de marcas neste artigo, assim mantenho a imparcialidade das minhas opiniões e evito que minha caixa de email receba as costumeiras notificações judiciais dos fabricantes que se sentem incomodados. Infelizmente, há empresas que investem mais em seu departamento jurídico do que no departamento de engenharia. Nada contra os advogados (eles são necessários em muitos casos e, como no caso do airbag e do DPS, é melhor você ter um bom), mas a engenharia é fundamental nesse caso. Empresas que não investem em pesquisa e desenvolvimento e têm medo de críticas e opiniões técnicas deveriam ser banidas do mercado. E ninguém melhor do que o consumidor para provocar esse banimento.
Na Figura 6 vemos a organização interna de um DPS da marca “D”. Na foto 6A vemos que o mesmo método de soltura por derretimento de solda é empregado. A diferença está no que acontece depois, quando o contato é interrompido.
Neste modelo de DPS, uma peça giratória, movida pela força da mola, empurra o contato metálico para o lado direito e preenche o espaço por onde poderia passar a corrente elétrica. Quando empurrado para a direita, o contato metálico ativa o circuito auxiliar de bypass (ilustrado na figura abaixo), onde encontramos um fusível.
Este fusível vai então interromper a corrente elétrica de forma segura, pois o arco elétrico vai ocorrer no interior do seu invólucro, sem risco de ocasionar o derretimento do DPS ou incêndio.
Comprando gato por lebre
Respeitando a máxima popular, deve-se tomar cuidado com o que se encontra no mercado. Além das diferenças mostradas na seção anterior, ainda temos que lidar com a falta de compromisso com a verdade de alguns fabricantes.
Na ausência de certificação compulsória para esse produto no Brasil, tudo pode acontecer no vale-tudo do mercado – as regras do jogo são: não há regras. Abaixo, vemos dois produtos das marcas “D” e “S”. Os dois são bonitinhos por fora, mas um deles é ordinário por dentro.
Nas Figuras 9 e 10 observamos trechos dos catálogos dos protetores de surto das marcas “D” e “S”. O primeiro catálogo faz menção aos certificados internacionais do produto, fornecidos por laboratórios acreditados.
O segundo menciona a norma IEC 61643, sem especificar se a norma é seguida e sem fornecer qualquer indicativo de que o produto possui um certificado de conformidade.
Nas Figuras 11 e 12 encontramos informações sobre os dispositivos internos de interrupção de corrente elétrica usados (ou supostamente usados) pelos dois fabricantes. O fabricante “S” diz possuir um sistema muito semelhante ao do fabricante “D”, patenteado.
Além de a informação ser falsa, pois claramente o produto da marca “S” não possui esse recurso – como fica evidente nas imagens da Figura 4 – as figuras apresentadas no catálogo desse fabricante parecem ter sido descaradamente copiadas de seu concorrente “D”.
As semelhanças entre as figuras são gritantes. O que dizer de um fabricante que apresenta informações falsas em seu próprio catálogo, alegando possuir uma tecnologia que não possui?
Conclusão
Para bons entendedores, meias palavras bastam. Se palavras não forem suficientes, ainda temos o certificado de conformidade, a norma técnica, os dados dos catálogos e as fotografias dos produtos que foram apresentadas neste artigo.
Faço estas perguntas finais ao leitor:
- Vale a pena empregar protetores de surto genéricos nas instalações fotovoltaicas?
- Você compraria um veículo com airbag de marca genérica apenas para ganhar um desconto menor do que o valor de uma pizza?
- Então, por que você aceita usar um DPS inferior?
Um DPS para aplicação fotovoltaica da marca “S” custa em torno de R$ 125 no mercado atualmente (valor para o consumidor final). O mesmo produto da marca “D”, com todas as vantagens que ele oferece, custa apenas 30% a mais.
Isso representa uma economia de cerca de R$ 40, que certamente não justifica o uso de um produto inferior, que vai colocar em risco o sistema fotovoltaico.
Nos sistemas fotovoltaicos encontrados no Brasil encontram-se muitos problemas, que vão desde erros crassos de projeto até falhas de instalação. O uso de protetores de surto de má qualidade é mais um problema que encontramos. Isso ocorre em grande parte pela desinformação do consumidor ou mesmo pela falta de conhecimento dos revendedores e distribuidores.
Este artigo mostrou que os dispositivos de proteção de surto não são todos iguais e a qualidade desse produto é importante para a operação segura dos sistemas fotovoltaicos, sem que isso represente um acréscimo significativo no valor global da instalação.