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O hidrogênio tem ganhado relevância no mundo devido à urgência de países e indústrias percorrem o caminho da transição energética, sobretudo no contexto dos compromissos firmados no Acordo de Paris de zerar as emissões de CO2 até 2050, com a intenção de limitar a temperatura global a 2 ºC acima dos níveis pré-industriais.
O hidrogênio é tratado como o combustível do futuro, vetor energético, considerado pelos especialistas como fundamental para promover a transição sustentável de setores de difícil descarbonização, como a indústria e os transportes.
De acordo com a IEA (Agência Internacional de Energia), a demanda global de hidrogênio chegou perto de 94 milhões de toneladas (Mt) em 2021, e deve chegar, em 2030, a 175 Mt.
Segundo o pesquisador da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), Glaysson de Mello Muller, o mercado mundial de hidrogênio correspondeu a US$ 117 bilhões em 2021. “Espera-se um crescimento significativo desse mercado nos próximos anos, que poderá alcançar US$ 200 bilhões.”
Atualmente, estima-se que 96% do hidrogênio é produzido a partir de combustíveis fósseis (como carvão e o gás natural) e apenas 4% é produzido por eletrólise da água (a partir da eletricidade de fontes limpas e renováveis).
Portanto, atualmente a produção de hidrogênio é altamente poluente. O desafio está em realizar a troca do hidrogênio cinza (extraído à base de gás natural), para um mais limpo, o hidrogênio verde (H2V), sem emissões de gás carbônico durante a sua produção.
Segundo a IEA, a substituição do hidrogênio cinza pelo verde ajudaria a evitar cerca de 830 milhões de toneladas de carbono por ano, o equivalente às emissões do Reino Unido e Indonésia juntos.
No Brasil, a produção de hidrogênio cinza está concentrada nos setores de refino e fertilizantes, segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Hoje a grande maioria das plantas de produção de hidrogênio se encontra em regiões litorâneas próximas à malha de gasodutos do Brasil, sendo que o fornecimento de hidrogênio como insumo para a indústria no país é realizado majoritariamente por quatro empresas de gases industriais: Linde (subsidiária da White Martins), Air Liquide, Air Products e Messer.
Mas como é produzido o hidrogênio verde? Qual é o seu custo de produção? Onde ele é usado? Como transportá-lo? Essas e outras questões serão respondidas ao longo desta reportagem.
Aplicações do hidrogênio
As aplicações do hidrogênio são diversas, como veremos a seguir, mas as principais são na indústria petrolífera e química.
Refino
Segundo Glaysson de Mello Muller, da EPE, atualmente o hidrogênio é utilizado na síntese de diversos produtos e em processos industriais. O refino de óleo bruto é responsável por 33% do consumo total de hidrogênio no mundo. Esse hidrogênio é produzido e consumido integralmente pelas próprias refinarias.
A instalação de produção de hidrogênio em escala mundial da Air Products perto de Edmonton, Alberta, Canadá, está conectada à rede de oleodutos de hidrogênio existente da empresa, que abastece refinadores e outras indústrias na região de Alberta Industrial Heartland. Foto: Air Products/Divulgação
O hidrotratamento e o hidrocraqueamento são os principais processos de consumo do hidrogênio no refino de óleo bruto para produzir óleo combustível. O hidrotratamento é empregado para remover impurezas, em especial o enxofre. Já o hidrocraqueamento utiliza o hidrogênio para beneficiar óleos pesados residuais em produtos petrolíferos de maior valor comercial.
Agricultura (amônia)
O aumento do consumo do hidrogênio no mundo nos últimos 30 anos está diretamente ligado ao aumento da produção de amônia, principalmente para a produção de fertilizantes nitrogenados.
Atualmente, cerca de 180 milhões de toneladas de amônia são produzidas anualmente. Além de fertilizantes, a amônica é usada em aplicações em refrigeração, produtos farmacêuticos, têxteis e explosivos.
Indústria e processos industriais (agentes redutores, refrigeração e criogenia)
O hidrogênio é empregado na indústria siderúrgica e de vidros para criar ambientes de redução em fornos de têmpera. O hidrogênio reage com óxidos de metal e retira o oxigênio das ligas de metal para obter aços especiais e mais puros.A mesma reação química é utilizada na produção de vidros planos onde o hidrogênio capta os átomos de oxigênio para evitar falhas no vidro produzido. Devido à sua elevada capacidade calorífica e condutividade do calor, o hidrogênio é muito utilizado como um meio refrigerador em usinas e plantas industriais.
O hidrogênio líquido também é adequado para o processo criogênico, ou seja, funciona como um meio refrigerador para temperaturas extremamente baixas (abaixo de -150 ºC).
Existem diversas aplicações para a criogenia, dentre as quais podem ser citadas a indústria de equipamentos médicos, gases liquefeitos, aeronaves e equipamentos de uso aeroespacial.
Produção de combustíveis (hidrogenação de hidrocarbonetos)
A instalação de produção de hidrogênio da Air Products em Port Arthur, Texas, fornece hidrogênio de alta pureza para a conversão de petróleo bruto pesado em gasolina de combustão mais limpa e diesel com baixo teor de enxofre. Foto: Air Products/Divulgação
Através de diversas reações químicas, o carvão mineral juntamente com hidrogênio é convertido em hidrocarbonetos líquidos. Dessa forma podem ser produzidos combustíveis sintéticos tais como gasolina, diesel e óleo combustível. Muller explica que esse processo atualmente apresenta baixa significância, principalmente pela alta emissão de gases do efeito estufa.
Indústria alimentícia (hidrogenação de gordura)
A gordura endurecida é frequentemente obtida a partir de óleo vegetal por meio do processo de hidrogenação. O hidrogênio é usado para saturar as moléculas de gordura, o que resulta em um ponto de fusão mais elevado, tornando o produto mais sólido. Uma aplicação do processo de hidrogenação consiste na produção de margarina hidrogenada na indústria de alimentos.
Armazenamento
O hidrogênio pode ser armazenado em sua forma gasosa em tanques especiais em grande quantidade e por longos períodos de tempo para posterior geração de energia elétrica.
Dessa forma, pode servir para armazenar energia renovável, mitigando a variabilidade das fontes entre as estações do ano e ajudando na penetração de fontes como eólica e solar na matriz energética.
O hidrogênio pode servir como armazenamento flexível de eletricidade, resolvendo assim o desequilíbrio entre a oferta e a demanda de energia.
Mobilidade
Ele também pode ser um combustível a ser utilizado diretamente em veículos, principalmente transportes pesados como caminhões, ônibus, trens, navios e aviões.
Para veículos de menor porte, sua aplicação pode ser feita a partir de célula a combustível produzindo energia veicular para veículos elétricos. A célula de combustível é um tipo de bateria (pilha) que fornece energia continuamente, em um processo reverso da eletrólise.
“Quanto mais pesado é o veículo, mais é a tendência dele justificar a utilização do hidrogênio. Em veículos leves a gente espera que a parcela seja menor, mas já existem veículos rodando que são movidos a hidrogênio”, disse o pesquisador do Instituto SENAI de Inovação em Energias Renováveis.
Segundo a IEA, a demanda por hidrogênio para o transporte cresceu 60% em 2021 em relação a 2020. O número de caminhões pesados movidos a hidrogênio aumentou significativamente em 2021 (mais de 60 vezes em relação a 2020), assim como a demanda estimada de hidrogênio de veículos comerciais, ou seja, vans e caminhões. A Alemanha liderou a implantação da primeira frota de trens com células de combustível a hidrogênio e o interesse está crescendo ao redor do mundo.
Como produzir o hidrogênio verde?
Embora o hidrogênio seja o elemento químico mais abundante do universo, ele raramente é encontrado na natureza em sua forma elementar. Por este motivo é preciso a adoção de um processo para sua obtenção. É a forma como este processo é realizado que vai definir, por exemplo, se ele será hidrogênio cinza ou verde.
O processo de hidrogênio cinza, por exemplo, ocorre a partir da queima do gás natural, em um processo conhecido como reforma a vapor
Já o hidrogênio verde é obtido a partir do processo de eletrólise, em que é usada uma corrente elétrica para quebrar a molécula de água, separando o hidrogênio do oxigênio.
Industrialmente existem três versões para o processo de eletrólise para produção do H2V.
- Eletrólise alcalina com eletrólitos alcalinos líquidos:
- Eletrólise ácida com um eletrólito polimérico sólido (como a PEM);
- Eletrólise de alta temperatura com um óxido sólido como eletrólito.
Os sistemas de eletrólise PEM e de eletrólise alcalina estão disponíveis em escala industrial. Já a tecnologia de eletrólise de óxido sólido está em fase inicial de desenvolvimento.
Importante destacar que para ser considerado verde, a eletricidade usada no processo de eletrólise deve ser gerada a partir de fontes de energia limpas e renováveis, como a eólica e a solar.
Este último fator, considerado essencial, deixa claro o potencial que o Brasil possui para se tornar uma grande exportador de H2V para o mercado mundial, devido ao seu potencial de radiação solar e de incidência de ventos.
Também é importante ressaltar que, além do uso de eletrolisadores, a produção de hidrogênio verde necessita de uso de compressores e tanques de armazenamento e de transporte.
Contudo, há algumas interrogações sobre a viabilidade do hidrogênio verde pelo seu alto custo de produção. Afinal, qual é o valor do investimento?
Qual é o custo de produção?
Segundo a ABH2 (Associação Brasileira de Hidrogênio), atualmente o custo de produção do hidrogênio verde varia entre US$ 5 e US$ 7 por quilograma.
Em contrapartida, o hidrogênio produzido a partir de combustíveis fósseis é de cerca de US$ 1,4 por quilograma de hidrogênio produzido.
Um estudo da BloombergNEF projeta o Brasil como um dos únicos países capazes de oferecer hidrogênio verde a um custo inferior a US$ 1 por quilograma até 2030. Em 2050, essa cifra pode cair para US$ 0,55/kg.
De acordo com Ranieri Rodrigues, pesquisador do Instituto SENAI de Inovação em Energias Renováveis (ISI-ER), estimativas de mercado apontam que são necessários 54 MWh para a produção de 1 tonelada de hidrogênio.
O uso da água em abundância no processo da eletrólise também é debatido entre o mercado. O Ipea aponta que são necessários cerca de 9 litros de água para produzir 1 kg de H2.
O mercado de hidrogênio verde
A IEA aponta que o mercado de hidrogênio verde atingiu o patamar de US$ 300 milhões em 2020. Seguindo os pesados investimentos que estão sendo feitos no setor, nas projeções da Agência, há uma expectativa de que em 2028 o mercado de H2V já movimente cerca de US$ 10 bilhões.
Esse crescimento inclui, não só um aumento do consumo tradicional de hidrogênio (indústria e agronegócio), mas também o consumo em novos mercados como os setores de transporte e energia.
Segundo a consultoria Roland Berger, o Brasil deverá ser protagonista no mercado de hidrogênio verde, podendo alcançar o valor anual de US$ 150 bilhões em 2050, principalmente devido à forte vocação para geração de energia renovável, como hidrelétrica, eólica, solar e biomassa. Por este motivo, o Brasil tem a tendência de participar fortemente desse mercado.
Ennio Peres, líder do Laboratório de Hidrogênio da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), ressalta que essa é a terceira onda do hidrogênio desde que esse combustível começou a ser considerado como solução para resolver problemas energéticos e ambientais.
A primeira foi por conta da crise do petróleo, durante a qual se buscava um combustível alternativo para os hidrocarbonetos. A segunda onda ocorreu nos anos 2000, com o governo dos Estados Unidos investindo em um substituto que pudesse vir dos derivados de petróleo, mas não emitisse gás carbônico (produção de hidrogênio com gás e captura de CO2).
Atualmente, o uso do hidrogênio é visto como um vetor para resolver o problema da emissão de gases de efeito estufa (GEE) dos segmentos de difícil descarbonização, como os setores de energia, indústria e transporte.
“Caiu uma ficha que o hidrogênio não é só um combustível para veículo, o hidrogênio é um vetor energético que pode ser útil em relação às emissões de vários setores”, diz Peres.
Em 2022, um estudo da Carbon Tracker – instituto de pesquisa independente que realiza análises aprofundadas sobre o impacto da transição energética nos mercados internacionais – apontava que ao menos 25 países já haviam se comprometido a investir cerca de US$ 73 bilhões em hidrogênio verde. Aproximadamente 14% desses recursos seriam oriundos dos setores públicos e privados da Alemanha.
A Alemanha, inclusive, realizou em fevereiro deste ano o primeiro leilão global para importar hidrogênio verde, com contratos de dez anos e entrega a partir de 2024. A ideia é que essa compra incentive investimentos em renováveis e a produção de amônia, metanol e combustível de aviação baseados em hidrogênio verde.
Segundo o Ministério Federal de Assuntos Econômicos e Ação Climática alemão, serão investidos 900 milhões de euros (R$ 5,1 bilhões) só nesta primeira rodada. Novos leilões serão realizados este ano, com entregas até 2036 e investimentos de 3,5 bilhões de euros (R$ 19,9 bilhões).
Novos mercados
De acordo com o consultor Rafael Valverde, CEO da Eolus, além dos mercados já tradicionais de fertilizantes e refino, novos mercados para o hidrogênio poderão ser desenvolvidos nos segmentos de transporte, geração elétrica, armazenamento de energia e processos industriais.
O hidrogênio pode ser utilizado diretamente como fonte de combustível de baixo carbono ou como vetor energético para viabilizar a maior entrada de renováveis variáveis como eólica e solar.
Rodrigues, do Instituto SENAI, explica que há uma perda de 40% de energia no processo de produção do hidrogênio, o que torna a aplicação de armazenamento para posterior reconversão do H2 em eletricidade pouco eficiente.
No entanto, a prática se torna viável quando se pensa em armazenar o excedente de energia que seria desperdiçada se não houvesse o armazenamento por hidrogênio.
Além do aproveitamento dos excedentes, para Peres, uma outra aplicação para o hidrogênio é permitir a maior penetração das renováveis reduzindo a intermitência das fontes através do armazenamento energético.
Ele explica que embora a reconversão do hidrogênio em eletricidade tenha um baixo fator de capacidade, a solução ainda é melhor do que o armazenamento de energia por baterias.
“O hidrogênio tem uma gama muito grande de aplicações, sendo que as duas principais em termos quantitativos são o uso no setor petroquímico, para remoção de enxofre, e no setor químico, para a produção de amônia para fertilizantes.” Segundo Peres, o setor petroquímico consome cerca de 80% do hidrogênio produzido no mundo e o de amônia 20%.
Transporte desafiador
O hidrogênio é uma substância gasosa, inflamável, incolor, inodora e insolúvel em água, por isso o transporte é muito crítico. Devido a sua baixa densidade e aos baixos pontos de ebulição e fusão, o manejo do hidrogênio é bastante desafiador.
O transporte geralmente acontece de forma gasosa (83%) ou liquefeita, em pressões elevadas e temperaturas muito baixas. Devido a sua capacidade de armazenar energia, essa substância é utilizada como combustível. Em comparação com o diesel, por exemplo, o potencial energético é três vezes maior.
Segundo Valverde, a forma mais comum de comercialização do hidrogênio será na forma de amônia, sobretudo para produção de fertilizantes. Nesse sentido, o Brasil se torna um grande mercado interno para o consumo de hidrogênio, uma vez que o agronegócio responde por 25% do PIB. A amônia é obtida por um processo chamado de Haber-Bosch, que consiste em reagir o nitrogênio e o hidrogênio em elevadas temperatura e pressão.
A fabricante de fertilizantes nitrogenados Unigel anunciou a construção da primeira fábrica de hidrogênio verde do Brasil para a produção de amônia. Com investimentos de aproximadamente US$ 120 milhões, a planta deve entrar em operação até o final deste ano.
Localizada no Polo Industrial de Camaçari (BA), a nova fábrica terá capacidade de produção de 10 mil toneladas/ano de hidrogênio verde e 60 mil toneladas ao ano de amônia. A Unigel já assinou um MoU (Memorando de Entendimento) com a Thyssenkrupp-Nucera para aumentar a capacidade da planta de H2V de 60 MW para 240 MW de eletrólise da água. (Veja na tabela outros possíveis investimentos em H2V no Brasil).
Entre os estados brasileiros mais favoráveis para a produção de hidrogênio, o Ceará é o grande destaque, principalmente por conta da grande oferta de energias renováveis, em especial a eólica, e pela localização geográfica (por ser a rota mais próxima para a exportação do insumo para Europa).
O resultado preliminar de um estudo realizado pelo Instituto SENAI de Inovação em Energias Renováveis (ISN-ER) apontou o Rio Grande do Norte, a Bahia e o Ceará como os estados que potencialmente terão o menor custo de produção de hidrogênio verde no país, estimado entre 2 a 7 dólares por quilograma.
Joaquim Rolim, secretário executivo da Indústria do Ceará, informa que o estado já assinou mais de 24 propostas de produção de hidrogênio, o que corresponde a 14 GW de potência e US$ 29 bilhões de investimentos.
Segundo Rolim, a expectativa é oficializar a primeira decisão de investimento em 2024, para começar a produzir hidrogênio em 2025. “A gente tem a convicção que aqui é o melhor lugar do mundo para produzir hidrogênio verde. Não é nada arrogante pensar que vamos ter 1% do mercado mundial, o que representa 1 milhão de toneladas de H2V”.
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