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O setor elétrico brasileiro passa por um momento de profunda transformação, impulsionado pela expansão das fontes solar e eólica. Embora essas fontes ofereçam benefícios ambientais e estratégicos, sua natureza intermitente impõe desafios significativos à estabilidade do sistema elétrico.
Enquanto o SIN (Sistema Interligado Nacional) enfrenta deficiências técnicas e regulatórias, soluções tecnológicas como redes inteligentes (smart grids) e sistemas de armazenamento de energia em baterias (Battery Energy Storage Systems – BESS) despontam como instrumentos essenciais para assegurar maior confiabilidade, flexibilidade e segurança ao suprimento elétrico.
Nesse contexto, uma atuação regulatória ágil e coordenada será decisiva para viabilizar a integração dessas soluções e consolidar o avanço da transição energética no Brasil.
Graças à sua dimensão continental e à abundância de recursos naturais, o Brasil consolidou ao longo das décadas uma matriz elétrica majoritariamente renovável, baseada principalmente na energia hidrelétrica. Nos últimos anos, contudo, o país se destacou como um dos líderes globais em geração solar. Em 2025, a energia solar ultrapassou 60 GW de capacidade instalada, alcançando 23,5% da matriz elétrica nacional e tornando-se a segunda maior fonte de geração do país.
Projeções indicam que, até 2031, as fontes solar e eólica combinadas poderão representar cerca de 47% da matriz elétrica brasileira — uma transformação notável em comparação a 2002, quando a energia hidrelétrica respondia por quase 90% da geração e as demais fontes renováveis ainda tinham presença incipiente.
Entretanto, o rápido crescimento das fontes renováveis intermitentes – em especial da energia solar – traz consigo novos desafios. A variabilidade inerente a essas fontes, somada à ausência de um despacho centralizado pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), tem resultado em sobrecargas e cortes de geração (curtailment) no Sistema Interligado Nacional (SIN).
Diante desse cenário, surge uma questão: é possível expandir o sistema elétrico brasileiro nos próximos anos de forma confiável e resiliente com base em fontes renováveis intermitentes?
Nesse novo paradigma tecnológico, as redes inteligentes (smart grids) e os sistemas de armazenamento de energia emergem como soluções fundamentais, em conjunto com o desenvolvimento de um arcabouço regulatório adequado.
As smart grids utilizam tecnologias avançadas e comunicação bidirecional para gerenciar de forma eficiente a oferta e a demanda de energia. Essas redes incorporam dois principais conjuntos de funcionalidades:
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Visibilidade em tempo real
Por meio de medidores inteligentes, sensores distribuídos e sistemas avançados de supervisão e controle (SCADA), é possível monitorar continuamente as condições da rede, garantindo o controle preciso de parâmetros como tensão, frequência e fluxos de energia. -
Controle descentralizado e ativo
Algoritmos de despacho, programas de resposta da demanda e mecanismos de reconfiguração automática permitem que consumidores, geradores distribuídos e microrredes atuem como agentes de balanceamento, atenuando as oscilações decorrentes da intermitência das fontes renováveis.
A aplicação de inteligência às redes elétricas também favorece a redução de perdas técnicas, o isolamento rápido de trechos afetados por contingências e a coordenação mais eficiente dos sistemas de proteção.
No que se refere ao armazenamento de energia, de acordo com o PDE 2034 (Plano Decenal de Expansão de Energia 2034), publicado pela EPE (Empresa de Pesquisa Energética) — entidade responsável por realizar estudos e pesquisas para subsidiar o planejamento do setor energético no Brasil — o cenário atual aponta para um ambiente de negócios cada vez mais favorável ao desenvolvimento e à adoção de tecnologias de armazenamento.
Dentro desse contexto, os sistemas de armazenamento de energia em baterias (Battery Energy Storage Systems – BESS) surgem como um ativo estratégico para solucionar o paradoxo energético brasileiro: vasto potencial renovável, porém limitada despachabilidade.
Os sistemas de armazenamento de energia em baterias (BESS) oferecem um caminho tecnológico para equilibrar oferta e demanda, garantindo um fluxo de energia constante e confiável. Eles armazenam o excedente de geração em períodos de alta produção e o liberam durante os momentos de pico de consumo.
O estudo da EPE destaca a versatilidade dos BESS e sua ampla gama de aplicações. Esses sistemas podem atuar como carga, gerador ou prestador de serviços de alto valor agregado. Alguns exemplos incluem regulação de frequência, deslocamento de carga (load shifting) e reserva girante para suporte à estabilidade de tensão
Na prática, essas baterias permitem armazenar energia solar — abundante e de baixo custo — durante as horas de maior irradiância e disponibilizá-la no final da tarde e à noite, reduzindo a necessidade de acionamento de usinas termelétricas a gás.
Nesse cenário, o mercado de sistemas de armazenamento em baterias (BESS) no Brasil possui um elevado potencial de expansão, impulsionado pela rápida integração das fontes renováveis, pela demanda por uma infraestrutura elétrica mais resiliente e pela relevância crescente da segurança energética como pilar estratégico para o desenvolvimento do setor elétrico nacional.
A experiência internacional demonstra que os sistemas de armazenamento de energia em baterias (BESS) podem ser uma solução viável. Na Califórnia, por exemplo, em resposta a um grave desequilíbrio entre oferta e demanda, o Estado implementou uma política agressiva de incentivo ao uso de BESS, que hoje totaliza cerca de 10 GW de capacidade instalada.
Na Austrália, após um grande apagão, foi lançado em 2017 um programa de reserva de potência com 150 MW em baterias, cujos investimentos foram rapidamente recuperados devido ao valor estratégico da tecnologia.
A integração dos BESS — especialmente em sistemas residenciais de armazenamento — também desempenhou papel fundamental na transição energética e na descentralização das redes elétricas na Alemanha.
Para o Brasil, a integração dos BESS ao Sistema Interligado Nacional representa uma oportunidade estratégica para mitigar a intermitência das fontes renováveis e fortalecer a confiabilidade do sistema, além de aumentar a flexibilidade e a eficiência da rede como um todo.
Não obstante, a adoção em larga escala de smart grids e BESS no país ainda enfrenta algumas barreiras econômicas, técnicas e regulatórias. O custo de capital das baterias, embora em queda, ainda representa um investimento significativo, especialmente para sistemas de armazenamento de longa duração, mais adequados às variações sazonais da disponibilidade eólica e solar.
Além disso, as características operacionais de um sistema altamente centralizado e de dimensão continental — com mais de 180 mil km de linhas de transmissão — exigem inovações regulatórias apropriadas para viabilizar a implantação consistente e de alta qualidade dos BESS.
No caso das smart grids, os principais desafios incluem riscos de cibersegurança e proteção de dados, altos custos iniciais, necessidade de modernização da infraestrutura, falta de conhecimento por parte dos consumidores além da demanda por tecnologias que garantam a interoperabilidade entre diferentes sistemas e plataformas ao longo do vasto território nacional.
Nesse contexto, fica evidente que a tecnologia, por si só, não é suficiente para impulsionar a transição energética. A implementação efetiva das smart grids e dos BESS deve integrar uma abordagem holística e coordenada, que combine planejamento integrado da rede, diversificação tecnológica e reformas regulatórias estratégicas, capazes de criar um ambiente propício à inovação e à modernização sustentável do setor elétrico brasileiro.
O Brasil iniciou recentemente o aperfeiçoamento da regulação para o armazenamento de energia. A Resolução nº 1.000/2021 da ANEEL e o Módulo 3 dos Procedimentos de Distribuição (PRODIST) autorizam a conexão de sistemas de armazenamento em baterias em unidades consumidoras, e o armazenamento de energia associado à micro e minigeração distribuída de até 3 MW já está autorizado no país pela Lei nº 14.300/2022.
Além disso, a ANEEL lançou a Consulta Pública nº 39/2023 para coletar contribuições da sociedade sobre o aprimoramento do marco regulatório brasileiro aplicável ao armazenamento de energia elétrica. Essa consulta marca o primeiro ciclo de debates que a Agência pretende realizar nos próximos anos sobre o tema.
Com base nos resultados da Consulta Pública, foram recomendadas diversas melhorias regulatórias a serem implementadas, incluindo:
- definição de um modelo de outorga para sistemas BESS independentes (standalone) e incorporação de seus requisitos de concessão à resolução normativa da ANEEL que já regula a autorização de usinas eólicas, solares, térmicas, entre outras;
- regulamentação dos pedidos de alteração das características técnicas dos BESS;
- atualização das normas de transmissão para contemplar a integração dos BESS ao sistema, incluindo requisitos de conexão, procedimentos de contratação e regras de faturamento pelo uso do sistema de distribuição e inclusão dos BESS independentes como usuários reversíveis de energia, bem como a viabilização de sua medição individualizada.
Paralelamente ao desenvolvimento regulatório, em 27 de setembro de 2024, o Ministério de Minas e Energia (MME) lançou a Consulta Pública nº 176 com o objetivo de estabelecer as diretrizes para o Leilão de Reserva de Capacidade em Potência de 2025 (LRCAP 2025). A principal inovação do LRCAP 2025 é a contratação de sistemas de armazenamento de energia por meio de baterias.
No âmbito da consulta pública conduzida pelo MME para o LRCAP 2025, as percepções institucionais sobre a inclusão de baterias no leilão indicaram que a capacidade de resposta instantânea, bem como a flexibilidade operacional e locacional dos sistemas de armazenamento m baterias (BESS), os torna potenciais soluções para diversas aplicações no setor elétrico brasileiro, incluindo o atendimento à demanda de ponta.
Ao mesmo tempo, foram identificados desafios regulatórios que ainda precisam ser superados para consolidar esta fonte de energia.
De acordo com as diretrizes técnicas divulgadas no LRCAP 2025, o risco associado à incerteza das ordens de despacho do ONS ficaria a cargo do empreendedor, abrangendo fatores como número de partidas e desligamentos, horas de operação e energia total entregue.
Além disso, os empreendedores fariam jus a uma Receita Fixa Anual, em R$/ano, a ser paga em doze parcelas mensais, podendo sofrer redução conforme a avaliação de desempenho operacional dos meses anteriores. Essa avaliação seria realizada mensalmente, levando em consideração a disponibilidade efetiva, e os termos correspondentes seriam objeto de regulamentação futura pela ANEEL.
No entanto, o LRCAP 2025 foi cancelado devido a disputas judiciais relacionadas aos critérios adotados para avaliação da disponibilidade de capacidade termelétrica, o que, segundo o MME, inviabilizou a continuidade do leilão.
O Ministério informou ainda que há expectativa de lançamento, até o final do ano, de uma nova consulta pública para a realização de um leilão focado em baterias, previsto para 2026. Esse evento deverá marcar um passo importante para a integração dos sistemas BESS no Brasil.
No que se refere às smart grids, a ANEEL tem incentivado sua adoção por meio de normas como a Resolução Normativa nº 966/2021 e a Portaria MME nº 111/2025, que estabelece diretrizes gerais para fomentar a digitalização gradual das redes e serviços de distribuição de energia elétrica em baixa tensão.
Nesse contexto, observa-se a adoção de medidores inteligentes por algumas distribuidoras, a exemplo da COPEL, cujo sistema permite o monitoramento da qualidade do fornecimento de energia com base em parâmetros como tensão, corrente e potência.
Em síntese, o Brasil se encontra em um momento decisivo de sua transição energética. A integração das smart grids, dos BESS e da inovação regulatória não constitui apenas um desafio tecnológico, mas uma transformação abrangente que requer ação coordenada entre as esferas regulatória, institucional e industrial.
Ao avançar na definição de regras claras, no estabelecimento de sinais de preço eficazes e na promoção de iniciativas direcionadas, o país poderá liberar todo o potencial de seus recursos renováveis, garantindo, ao mesmo tempo, confiabilidade e resiliência ao sistema elétrico.
Para acompanhar o ritmo global, o país precisará adaptar seu arcabouço regulatório e operacional, tornando-o mais flexível, inteligente e descentralizado.
Para que isso se concretize, é essencial que toda a cadeia decisória — reguladores, legisladores e agentes do setor — se mobilize de forma coordenada e urgente, garantindo que o Brasil avance no ritmo necessário rumo a uma matriz energética mais segura, limpa e inovadora.
Em última análise, as smart grids, os sistemas de armazenamento em baterias (BESS) e a inovação regulatória formam, em conjunto, a base de um sistema elétrico moderno, confiável e resiliente.
Quando combinadas com a diversificação e a gestão descentralizada, essas soluções permitirão ao Brasil avançar em sua transição energética sem comprometer a qualidade ou a continuidade do suprimento — fatores essenciais para o bem-estar econômico e social.
Para garantir a integração efetiva dessas soluções ao sistema elétrico brasileiro, é necessário avançar em diversas frentes regulatórias e institucionais, incluindo o desenvolvimento de normas claras e precisas, a definição de critérios de sinalização de preços e a implementação de iniciativas específicas de incentivo a essas tecnologias (como o LRCAP).
O caminho a seguir demandará adaptabilidade, colaboração e comprometimento com a modernização. Se esses esforços forem bem-sucedidos, o Brasil não apenas assegurará um fornecimento de energia elétrica seguro e confiável para sua população, como também reforçará sua posição de liderança no movimento global em direção a um futuro energético sustentável e inovador.
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