O setor elétrico brasileiro segue sua trilha entre avanços e recaídas que revelam como certos dilemas se repetem sob novas roupagens.
Ao longo dos primeiros meses de 2025, diferentes episódios ajudaram a compor um cenário marcado por expectativas frustradas, movimentos contraditórios e sinais econômicos ainda difusos sobre os melhores rumos a seguir.
Com promessas não concretizadas, decisões contestadas e disputas institucionais, vai se formando um retrato de evolução desigual — com lições assimiladas e outras que seguem escapando e se perdendo pelo caminho.
Neste breve olhar, propomos uma leitura sobre alguns desses movimentos recentes, sem a pretensão de esgotá-los, mas com o intuito de conectar os pontos que hoje revelam as tensões centrais do setor.
O leilão de reserva de capacidade suspenso: uma frustração regulatória inicial
O início de 2025 foi marcado por expectativas em torno do Leilão de Reserva de Capacidade, previsto para junho, que poderia ter representado um passo importante na recomposição da segurança elétrica do sistema — por meio da contratação de potência firme, especialmente de fontes despacháveis.
No entanto, a condução do certame foi interrompida por decisão judicial que acolheu a tese de ausência de consulta pública específica sobre suas regras, entendendo haver violação procedimental à luz do que dispõem os princípios da ampla participação dos agentes e da legitimidade dos atos administrativos.
Porém, no tema da reserva de potência, nem tudo foi dissabor. Permanece no radar regulatório, a possibilidade de um novo certame com foco no armazenamento de energia, cuja modelagem poderá representar um avanço relevante para a viabilização de projetos de BESS no país.
Vale lembrar que segue em curso a Consulta Pública nº 39/2023, da qual decorreu a Nota Técnica nº 266/2024 da ANEEL, que consolidou a base técnica dos estudos sobre o papel do armazenamento no setor — mas ainda sem desdobramento normativo.
Ainda remanescem lacunas importantes quanto à estruturação do modelo aplicável aos sistemas de armazenamento, tanto no acesso à rede e na outorga, quanto na definição de encargos e formas de remuneração.
Ou seja, embora o tema permaneça presente na agenda institucional, a ausência de diretrizes normativas mais claras vem inibindo decisões de investimento e dificultando a consolidação de modelos de negócio viáveis para o armazenamento.
O momento exige não apenas continuidade nos estudos, mas definição de marcos regulatórios mínimos que confiram segurança jurídica e permitam destravar o papel estratégico do storage no setor elétrico brasileiro.
Curtailment: revisões regulatórias e a conta que ameaça voltar
A redução compulsória da geração — o chamado curtailment — segue no centro das atenções em 2025 – como foi em 2024 – sobretudo diante da continuidade da grande influência das fontes renováveis no sistema e da ampliação disfuncional das restrições demandadas pelo ONS.
Como é amplamente conhecido, a Resolução Normativa nº 1.030/2022 da ANEEL estabeleceu três modalidades distintas que podem ensejar cortes de geração: por indisponibilidade externa, por confiabilidade elétrica e por razão energética.
A norma, embora inovadora em seu momento, passou a ser tensionada pelo aumento do número de agentes afetados e pela ausência de um tratamento econômico mais claro para os efeitos dessas limitações.
Outros aspectos, como o critério “5% ou 5 MW” proferido pelo ONS, acentuam o rigor das regras operativas, ao mesmo tempo em que reduzem o campo das compensações — o que vem sendo uma má notícia para as empresas de geração, que, até onde se tem notícia, têm feito um esforço hercúleo para operarem diante da nova realidade sistêmica.
No âmbito de consulta pública, a ANEEL busca revisitar a lógica de compensações e aprimorar os parâmetros que fundamentam decisões razoáveis de despacho — ou de sua restrição.
O debate técnico já está instaurado e aponta para a necessidade de calibrar melhor os instrumentos de planejamento, de modo a mitigar os efeitos financeiros que hoje recaem de forma assimétrica sobre determinados agentes.
De outro turno, no governo federal, porém, encaminha-se uma solução de natureza distinta. O MME (Ministério de Minas e Energia), em articulação com entidades e associações do setor, passou a vislumbrar a possibilidade de tratar os impactos do curtailment como um custo a ser absorvido por meio do Encargo de Serviços do Sistema (ESS).
A proposta, ainda em formulação, implicaria na socialização desses valores entre os consumidores, sem a necessidade de abertura de linha de crédito setorial — como já ocorreu em situações excepcionais do passado — ou de repactuação formal entre os agentes.
A solução, no entanto, ainda não é consensual. A ANEEL não vem sinalizando concordância com essa abordagem, alertando para os impactos tarifários e para o risco de esvaziamento da lógica de responsabilidade individual que historicamente orienta a regulação setorial — especialmente no que se refere à alocação de riscos entre os agentes.
Caso avance, a proposta pode gerar efeitos tarifários relevantes e adicionar mais um nível de pressão sobre a inflação, num contexto em que outros aumentos já se delineiam no horizonte.
O tema segue em marcha, mas revela uma preocupação que ultrapassa o debate técnico: como financiar os desequilíbrios da operação sem romper com os princípios estruturantes do setor?
O MME e os paradoxos da reforma do setor elétrico
A busca por um setor elétrico mais moderno e eficiente tem sido pauta recorrente nas declarações oficiais. Na prática, porém, observa-se uma sucessão de medidas e discursos que nem sempre se alinham.
A convivência entre metas ambiciosas e estruturas institucionais frágeis levanta dúvidas sobre a real viabilidade de algumas das propostas em discussão.
Um dos pontos mais sensíveis está na anunciada abertura do mercado para consumidores de baixa tensão. A proposta ressoa na expectativa de maior liberdade de contratação, mas esbarra em limitações técnicas concretas: a ausência de medição adequada, a fragilidade dos mecanismos de portabilidade e a falta de infraestrutura para suportar a massificação da operação limitam, desde já, a aplicabilidade prática da medida.
Ao mesmo tempo, surgem sinalizações de ampliação de benefícios tarifários, como a proposta de isenção para o consumo de até 80 kWh por famílias de baixa renda e o reforço de mecanismos voltados à população vulnerável.
Ainda que essas medidas encontrem respaldo social, seu custeio por meio de repasses cruzados amplia a pressão sobre os consumidores não beneficiados — especialmente em um cenário de inflação energética em ascensão.
O panorama se torna ainda mais complexo diante da discussão sobre o reposicionamento dos encargos setoriais. Nos bastidores, ganha força a proposta de redistribuir obrigações financeiras, ampliando a responsabilidade do mercado livre por determinados custos sistêmicos.
A medida, se efetivada, pode comprometer a atratividade desse ambiente — justamente no momento em que se tenta impulsioná-lo.
A falta de coerência entre essas direções compromete a clareza dos sinais que deveriam orientar os investimentos e a organização do setor. A modernização, tão frequentemente evocada, exige mais do que boas intenções ou slogans bem formulados.
Requer alinhamento entre objetivos técnicos, institucionais e econômicos, bem como disposição para enfrentar tensões distributivas de forma transparente e previsível.
O antigo Projeto de Lei nº 414/2021, que serviu de base conceitual à proposta recentemente encaminhada à Casa Civil, ainda não teve desfecho próprio — ao menos em relação aos principais pontos que buscava endereçar. Enquanto isso, o setor segue operando por remendos normativos, compensações pontuais e decisões muitas vezes reativas.
O risco é que a promessa de transformação se dilua, mais uma vez, em medidas de curto prazo. Será que ainda é possível falar em modernização, sem abrir espaço para trocas voluntárias, sinais econômicos consistentes e soluções menos dependentes de centralizações políticas decisórias — e do habitual desfile de jabutis que costuma acompanhar qualquer proposta de reforma?
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