Surgiu em diversos meios de comunicação, desde sites especializados em tecnologia até jornais de notícias populares, a notícia de um “painel solar que gera energia à noite”. Independentemente da base científica desse tipo de notícia, quase sempre há uma certa dose de exagero.
O artigo “Nighttime electric power generation at a density of 50 mW/m2 via radiative cooling of a photovoltaic cell”, que é a fonte desse barulho todo, foi publicado na revista “Applied Physics Letters” em 5 de abril deste ano, acompanhado de um material complementar que pode ser obtido clicando aqui.
A revista PV Magazine publicou um resumo do artigo original no dia 6 de abril e a revista Electronic Design publicou o artigo “Hybrid PV+TEG Device Yields Day/Night Solar Harvesting”, datado de 21 de abril, que explica o assunto de forma mais completa, também com base no trabalho original.
O artigo original publicado na “Applied Physics Letters”, produzido por pesquisadores da renomada Universidade de Stanford, começa seu resumo com o seguinte parágrafo (em tradução direta), que parece o prenúncio de uma solução milagrosa para a geração de energia elétrica:
“Uma grande fração da população mundial não tem acesso à rede elétrica. As células fotovoltaicas (FV) padrão podem fornecer uma fonte renovável de eletricidade fora da rede, mas produzem energia apenas a partir da irradiação solar diurna e não produzem energia à noite.”
E assim termina o abstract (resumo) do trabalho: “Nosso sistema pode ser usado como uma fonte de energia renovável contínua para o dia e a noite em locais fora da rede.”
Coisas assim nos induzem a pensar que estamos diante de uma inovação disruptiva, que vai fornecer energia elétrica infinita para as pessoas durante as 24 horas do dia, faça sol ou chuva, sem o uso de baterias. Será que isso é verdade?
Gerador termelétrico
A base da invenção de Stanford é o dispositivo termelétrico de Seebeck-Peltier, que possui um comportamento termodinâmico reversível e pode ser um gerador de energia elétrica ou uma bomba de calor alimentada por eletricidade.
O gerador termelétrico é um dispositivo que converte o fluxo de calor (obtido a partir de diferenças de temperatura) diretamente em energia elétrica através de um fenômeno chamado efeito Seebeck.
O gerador termelétrico é encontrado comercialmente na forma de pastilhas que possuem um lado quente, um lado frio e dois terminais elétricos, positivo e negativo. Basta acoplar as faces respectivas da pastilha a corpos com diferentes temperaturas para obter uma tensão elétrica em seus terminais, como uma pilha.
Esses dispositivos às vezes também são chamados de pastilhas de Peltier, pois podem ser usados com o fenômeno reverso, ou seja, produzindo diferenças de temperatura a partir da aplicação de tensão elétrica em seus terminais.
Essas pastilhas, através do efeito Peltier, podem ser usadas em aplicações de refrigeração, com a criação direta de um fluxo de calor a partir de uma fonte elétrica. Entretanto, a eficiência é baixa (ou seja, gasta-se muita energia elétrica para produzir pouca diferença de temperatura), o que inviabiliza seu uso para competir com sistemas convencionais de refrigeração.
O trabalho de Stanford
A pesquisa publicada na revista “Applied Physics Letters” apresenta o protótipo de um dispositivo que consiste em uma célula fotovoltaica acoplada a um gerador termelétrico.
Não foi inventado um painel solar que funciona à noite, como alardeado pela imprensa. O referido trabalho apenas publicou os resultados de um experimento de física aplicada com uma pequena célula fotovoltaica e uma pastilha termelétrica que pode ser adquirida no mercado.
Embora reconheçam que já existiam experiências anteriores sobre o mesmo assunto, os autores afirmam que a energia produzida pelo dispositivo atual é muito superior, com uma densidade de 50 mW (miliwatts, ou milésimos de watts) por metro quadrado.
O experimento empregou uma célula fotovoltaica monocristalina e um gerador termelétrico comercial TG12-4-01LS, mostrado na Figura 2, com dimensões de 30 x 30 x 3,22 mm, montados conforme a ilustração da Figura 3.
A Figura 4 apresenta um gráfico de desempenho encontrado na folha de dados da pastilha termelétrica. Ela consegue fornecer uma potência de 4 W se o seu lado frio estiver a 50 oC e o seu lado quente estiver a 230 oC – ou seja, uma diferença de temperatura de 180 oC entre as duas faces.
Percebe-se então que o uso prático dessa pastilha requer diferenças de temperatura muito altas, não encontradas normalmente em qualquer lugar. No experimento realizado, a diferença de temperatura é muito pequena e a pastilha fornece apenas uma fração ínfima da sua potência normal, de acordo com as condições mostradas no gráfico.
Conclusão
Para efeito de comparação, um painel solar convencional de 540 W fornece aproximadamente 160 W/m2 (durante o dia) em condições NOCT (temperatura nominal de operação da célula) – uma densidade de potência 3168 vezes maior do que 50 mW.
Analisando de outra forma, um painel solar de 540 W dotado da solução termelétrica proposta seria equivalente a um painel de 0,16 W durante a noite. Precisaríamos de 3.168 painéis iguais a este para alcançar a mesma potência obtida durante o dia.
E a coisa fica ainda pior se analisarmos o custo para usar esse dispositivo em larga escala, com painéis solares tendo suas partes traseiras cobertas de pastilhas termelétricas e dissipadores térmicos. Produziríamos uma quantidade muito pequena de energia a um custo altíssimo.
Uma única pastilha termelétrica custa cerca de $22 dólares e precisaríamos de pelo menos 60 delas para fabricar um painel, fora o custo (e o peso) dos dissipadores térmicos.
Então, no lugar de geradores termelétricos, chegamos à conclusão de que é melhor usar baterias para armazenar energia durante o dia, gerada a partir de módulos fotovoltaicos convencionais.
Embora o experimento de Stanford não deixe de ser interessante e valioso, como todo experimento técnico-científico, a invenção ainda está longe de ser anunciada como um “painel solar que funciona à noite” ou como algo que poderá suprir a necessidade energética de qualquer tipo de consumidor.
Dispositivos como este podem ser uma solução interessante para “energy harvesting”, um termo que genericamente usamos para a obtenção de energia em qualquer lugar onde ela esteja disponível, normalmente em locais ou situações onde ela seria desperdiçada.
A geração termelétrica é um exemplo muito bom de energy harvesting. Pode-se usar a diferença de temperatura entre o ar e o corpo de uma máquina, por exemplo, para produzir energia (muito pouca, mas suficiente) para alimentar algum dispositivo eletrônico de baixíssimo consumo.
O mesmo podemos pensar da solução híbrida fotovoltaica-termelétrica: pode ser uma alternativa para alimentar micro-equipamentos com baixo consumo durante a noite, mas definitivamente ainda não é “uma fonte de energia renovável contínua para o dia e a noite em locais fora da rede”, como foi propagandeado.
2 respostas
Parabéns pela matéria!
Embora qualquer aproveitamento de espécie de energia que seria considerada como perdas devido ao não uso no objetivo final a que se destina, temos que sempre levar em consideração a que custo se aproveita essa energia. O binômio custo e eficiência energética, nos dias de hoje, é uma condição inexorável e não pode ser desprezado. A maioria das transformações de uma energia em outra se faz com o aparecimento de energia térmica que a mais comum de todas as formas de energia, até quando dormimos. É muito importante que seja desmascarado esses mitos sobretudo em se tratando de ciência e inovação. O mundo está cheio de gente que frauda resultados que criam expectativas além das reais. Dou os meus parabéns para a publicação.Engenheiro, professor, mestre em ciências de engenharia elétrica – sistema de potência – COPPE/UFRJ, projetista e consultor em geração fotovoltaica e eficiência energética.